A CRIAÇÃO: O quarto dia
O quarto dia da criação produziu o sol, a lua e as estrelas. Essas esferas celestes não foram na verdade formadas neste dia; foram criadas no primeiro dia, e meramente colocadas nos seus lugares no céu no quarto dia.
No princípio o sol e a lua desfrutavam de poderes e privilégios iguais. A lua falou com Deus e disse:
Deus respondeu:
– Para que ficasse conhecido das minhas criaturas que existem dois1 mundos. A lua:
– Ó, Senhor, qual dos mundos é maior, este mundo ou mundo que está por vir?
Deus:
– O mundo que está por vir é maior.
A lua:
– Ó, Senhor, tu criaste dois mundos, um maior e um menor; criaste o céu e a terra, sendo que o céu supera a terra; criaste o fogo e a água, sendo a água mais forte do que o fogo, porque pode apagá-lo. Agora criaste o sol é a lua, e é apropriado que um seja maior do que o outro.
Então disse Deus à lua:
- Sei bem que sua intenção é que eu lhe faça maior do que o sol. Como punição decreto que você fique com apenas um sexto da sua luz.
A lua suplicou:
– Devo ser punida tão severamente por ter dito uma única palavra?
Deus cedeu:
– No mundo futuro a sua luz lhe será restaurada, de modo que sua luz será novamente como a luz do sol.
A lua não estava ainda satisfeita.
– Ó, Senhor – ela disse, – e a luz do sol, quão grande será naquele dia?
A ira do Senhor acendeu-se então mais uma vez.
– Quê? Você está conspirando contra o sol? Tão certo quanto você vive, no mundo que está por vir a luz dele será sete vezes mais forte do que a luz que ele hoje irradia.
O sol percorre o seu curso como um noivo, sentado sobre um trono com uma guirlanda ao redor da cabeça. Noventa e seis anjos acompanham-no em sua jornada diária, em turnos de oito a cada hora: dois à sua esquerda, dois à sua direita, dois à frente e dois atrás. Forte como é, o sol poderia completar o seu curso do sul ao norte num único instante, mas trezentos e sessenta e cinco anjos restringem-no através de inúmeros ganchos de ferro. Cada dia um dos anjos solta o seu gancho, de modo que o sol é obrigado a gastar trezentos e sessenta e cinco dias no seu curso. O progresso do sol em seu circuito é uma canção ininterrupta de louvor a Deus. E é apenas essa canção que torna o seu movimento possível. Por essa razão, quando quis ordenar que o sol se detivesse no seu curso Josué ordenou que ele se calasse. Tendo calado sua canção de louvor, o sol ficou imóvel.
O sol tem duas faces: uma, de fogo, voltada para a terra, e outra de granizo, voltada para o céu, cuja função é aplacar o prodigioso calor que irradia da oura face – de outro modo a terra pegaria fogo. No inverno o sol volta sua face de fogo para cima, e dessa forma o frio é produzido. Quando se põe no oeste ao entardecer o sol mergulha no oceano e toma um banho, sendo seu fogo extinguido, e por essa razão ele não dispensa fogo nem calor durante a noite. Porém logo que alcança o leste na manhã seguinte ele mergulha numa corrente de fogo, que acende-o e concede-lhe calor, os quais o sol derrama sobre a terra. Da mesma forma a lua e as estelas tomam banho numa corrente de granizo antes de assumirem os seus postos à noite.
Quando o sol e a lua estão prontos para dar início ao seu ciclo de tarefas eles aparecem diante de Deus e imploram que ele os dispense de cumprir a sua obrigação, a fim de serem poupados de contemplar a humanidade pecaminosa. É somente mediante constrangimento que eles procedem com seu curso diário. Retornando da presença de Deus sol e lua encontram-se cegados pela radiância do céu, e não conseguem encontrar o caminho. Deus, por essa razão, lança flechas, por cuja luz cintilante eles são guiados. É devido à pecaminosidade do homem, a qual o sol é forçado a contemplar em seus cursos diários, que ele enfraquece à medida que se aproxima a hora do seu declínio, pois os pecados têm um efeito corruptor e delibitante, e ele se põe no horizonte como uma esfera de sangue, porque o sangue é o sinal de corrupção.
De manhã, ao lançar-se no seu curso, as asas do sol tocam as folhas das árvores do paraíso, e sua vibração é transmitida aos anjos e aos santos Hayyot, às outras plantas e também às árvores e plantas da terra, bem como a todos os seres da terra e do céu. É sinal para que eles voltem seus olhos para o céu. Logo que contemplam o Nome Inefável, que está gravado no sol, eles erguem suas vozes em canções de louvor a Deus. No mesmo momento é ouvida uma voz celestial que diz: “Ai dos filhos dos homens, que não atentam em honrar a Deus como essas criaturas que erguem agora suas vozes em adoração”. Essas palavras, naturalmente, não são ouvidas pelos homens, da mesma forma que eles não escutam o rangido do sol contra a roda na qual estão presos todos os corpos celestes, embora o som seja extraordinariamente alto. Essa fricção entre o sol e a roda produz as partículas cintilantes que dançam nos raios de sol. Essas são portadoras de cura aos doentes, as únicas criações doadores de saúde do quarto dia, no todo um dia desafortunado, especialmente para as crianças, sendo nele afligidas por doenças. Quando Deus puniu a ciumenta lua, diminuindo sua luz e esplendor de modo que ela deixasse de se equiparar ao sol como havia sido originalmente, a lua caiu, e minúsculos fragmentos soltaram-se do seu corpo. Esses são as estrelas.
No quinto dia da criação Deus tomou fogo e água, e desses elementos fez os peixes do mar. Os animais da água são muito mais numerosos do que os da terra. Para cada espécie na terra, com exceção da fuinha, há uma espécie correspondente na água e, além disso, muitas outras encontradas apenas na água.
O regente sobre as criaturas do mar é o leviatã. Juntamente com os outros peixes, ele foi feito no quinto dia. Originalmente ele foi criado macho e fêmea como todos os outros animais. Porém quando ficou evidente que um par desses monstros poderia aniquilar toda a terra com a sua força, Deus matou a fêmea. Tão imenso é o leviatã que para saciar sua sede ele requer toda a água que flue do Jordão mar adentro. Sua comida consiste de peixes que entram espontaneamente entre suas mandíbulas. Quando ele está com fome um hálito quente sopra de suas narinas, que torna as águas do grande mar quentes ao ponto da ebulição. Por mais formidável que seja o behemoth, o outro monstro, ele sente-se inseguro até que o leviatã tenha saciado a sua sede. A única coisa que pode mantê-lo sob controle é o esgana-gato, um pequeno peixe que foi criado com esse propósito, e diante do qual o monstro queda em assombro. Porém o leviatã não é apenas grande e forte; é além disso maravilhosamente formado. Suas barbatanas irradiam ofuscante luz, sendo o próprio sol obscurecido por ela, e também seus olhos projetam tamanho esplendor que o mar é com freqüência repentinamente iluminado por ele. Não é de admirar que essa fera maravilhosa seja o brinquedo de Deus, com o qual ele passa seu tempo.
Apenas uma coisa torna o leviatã repulsivo: seu odioso cheiro, que é tão forte que se penetrasse o próprio Paraíso torna-lo-ia inabitável.
O verdadeiro propósito do leviatã é servir de iguaria aos justos no mundo do porvir. A fêmea foi colocada em salmoura tão logo morta, para ser preservada até o momento em que sua carne será necessária. O macho está destinado a prover uma visão extraordinária a todos os espectadores antes de ser consumido. Quando sua última hora chegar Deus convocará os anjos para que entrem em combate contra o monstro. Mas tão logo o leviatã lance o seu olhar sobre eles os anjos fugirão, desfalecidos de medo, do campo de batalha. Eles retornarão à carga com espadas, porém em vão, porque suas escamas podem repelir o ferro como se fosse palha. Eles não terão mais sucesso quando tentarem matá-lo arremessando pedras e lanças; tais mísseis ricochetearão sem causar a menor impressão no corpo do monstro. Desanimados, os anjos desistirão do combate, e Deus ordenará que o leviatã e o behemoth entrem em duelo um contra o outro. Como resultado ambos cairão mortos, o behemoth esmagado por um golpe das barbatanas do leviatã, o leviatá morto por um açoite da cauda do behemoth. Da pele do leviatã Deus construirá tendas para abrigar as multidões dos piedosos enquanto eles desfrutam dos pratos feitos da sua carne. A quantidade designada a cada justo será proporcional a seus merecimentos, e ninguém invejará ou se ressentirá da porção maior de outro. O que sobrar da pele do leviatã será esticado como toldo sobre Jerusalém, e a luz que se projetará dela iluminará o mundo inteiro, e o que restar da sua carne, depois que os justos tiverem saciado seu apetite, será distribuído entre o restante dos homens.
No mesmo dia em que os peixes foram criados os pássaros, pois essas duas espécies de animais são intimamente relacionadas uma à outra. Os peixes são formados de água, os pássaros de terreno pantanoso saturado de água.
Da mesma forma que o leviatã é o rei dos peixes, o ziz foi apontado para governar sobre os pássaros. Seu nome vem da variedade de sabores que sua carne tem; tem gosto disso, zeh, e daquilo, zeh. O ziz é tão monstruosamente grande quanto o próprio leviatã. Seus tornozelos repousam sobre a terra, e sua cabeça chega ao próprio céu.
Aconteceu certa vez que viajantes num navio perceberam uma ave: ela estava em pé sobre água, que meramente cobria-lhe os pés, e sua cabeça chocava-se contra o céu. Os observadores concluíram que a água não podia ser nada profunda naquele ponto, e prepararam-se para tomar banho ali. Uma voz do céu os advertiu: “Não desçam aqui! Certa vez um machado de carpinteiro escorregou de sua mão neste local, e levou sete anos para chegar ao fundo”. O pássaro que os viajantes viram era nada mais nada menos do que o ziz. Suas asas são tão vastas que abertas obscurecem o sol. Elas protegem a terra contra as tempestades do sul; sem o seu auxílio a terra não seria capaz de resistir aos ventos que sopram daquela direção. Certa vez um ovo de ziz caiu no chão e quebrou. Seu líquido inundou sessenta cidades, e o impacto esmagou trezentos cedros. Felizmente acidentes como esse não ocorrem com freqüência: normalmente o pássaro faz seus ovos deslizarem gentilmente para dentro do ninho. Esse infortúnio ocorreu devido ao fato de que aquele ovo estava podre, e o pássaro jogou-o fora descuidadamente.
O ziz tem outro nomem, Renanin, porque é o cantor celestial. Devido à sua relação com as regiões celestiais ele é também chamado de Seqwi, o vidente, e é além disso chamado de “filho do ninho”, porque ao nascer seus filhotes desembaraçam-se de seus ovos sem o auxílio da mãe; nascem, por assim dizer, diretamente do ninho. Como o leviatã, o ziz é uma das iguarias que será servida aos piedosos no final dos tempos, para compensar as restrições alimentares impostas sobre eles, que proíbem-nos de consumir aves imundas.
A CRIAÇÃO: O sexto dia
Da mesma forma que os peixes foram formados da água e os pássaros de argila misturada com água, os mamíferos foram formados da terra sólida; da mesma forma que o leviatã é o representante mais notável dos peixes e o ziz dos pássaros, o behemoth é o mais notável representante dos mamíferos. A força do behemoth se equipara à do leviatã, tendo sido ele também impedido, como o leviatã, de crescer e multiplicar-se, do contrário o mundo não poderia continuar a existir. Depois de tê-lo criado macho e fêmea, Deus privou-o imediatamente do desejo de propagar sua espécie. Ele é tão monstruoso que requer a vegetação de milhares de montanhas para sua alimentação diária. Toda a água que flui pelo leito do Jordão num ano inteiro basta-lhe para precisamente um único gole. Foi por essa razão necessário conceder-lhe um corrente dedicada a seu uso exclusivo, corrente que flui do Paraíso e chama-se Yubal. Também o behemoth está destinado a ser servido aos bem-aventurados como apetitosa iguaria, mas antes de desfrutarem da sua carne ser-lhes-á permitido assistir ao combate mortal entre o leviatã e o behemoth, como recompensa por terem se privado dos prazeres do circo e das disputas dos gladiadores.
O leviatã, o ziz e o behemoth não são os únicos monstros; há inúmeros outros, e fabulosos, como ore’em, animal de proporções gigantescas do qual um único casal, macho e fêmea, existem. Se fossem mais numerosos o mundo mal teria como manter-se diante eles. A cópula dos re’em ocorre apenas a cada setenta anos, pois Deus ordenou que o macho e a fêmea residissem em cantos opostos da terra, um a leste, outro a oeste. A cópula resulta na morte do macho, que é mordido pela fêmea e morre com a mordida. A fêmea emprenha e permanece nesse estado por não menos que doze anos. Ao final desse longo período ela dá a luz gêmeos, um macho e uma fêmea. No ano que precede ao parto ela é incapaz de se mover e morreria de fome, não fosse pela saliva que brota copiosamente da sua boca, que rega e faz frutificar a terra junto a ela, levando-a a produzir o que basta para o seu sustento. Por um ano inteiro tudo que o animal consegue fazer é rolar de uma lado para o outro, até que seu ventre finalmente se rompe e saem os gêmeos. Sua aparição é portanto o sinal para a morte da mãe re’em. Ela abre espaço para a nova geração, que está por sua vez destinada a sofrer o mesmo destino da geração anterior. Imediatamente após o nascimento um dos gêmeos parte para leste e outro para oeste, para reencontrarem-se apenas após a passagem de setenta anos, reproduzirem-se e morrerem. Um viajante que viu certa vez um re’em descreveu-o com tendo vinte quilômetros de altura, sendo o comprimento da sua cabeça de oito quilômetros. Seus chifres têm uma circunferência de cem metros, e sua altura é muito maior.
Uma das criaturas mais notáveis é o “homem da montanha”, Adne Sadeh, ou, simplesmente, Adão. Sua aparência é exatamente a de um ser humano, porém ele permanece preso ao chão por um cordão umbilical, do qual sua vida depende. Quando o cordão é cortado, ele morre. Esse animal mantém-se vivo com o que é produzido no solo ao redor de si, dentro da distância que sua corda permite que ele cubra. Nenhuma criatura pode aventurar-se a adentrar o raio do seu cordão, pois ele ataca e destrói qualquer coisa a seu alcance. Para matar o Adne Sadeh não se pode aproximar-se dele; seu cordão umbilical deve ser rompido à distância com um dardo, sendo que ele morre em seguida entre gemidos e lamentos.
Certa vez aconteceu de um viajante encontrar-se hospedado dentro da região em que esse animal é encontrado. Ele ouviu, sem ser percebido, seu anfitrião conversando com a esposa sobre o que deveriam fazer para honrar seu hóspede, e resolvendo servir a ele “o nosso homem”, nas suas palavras. Pensando que havia caído entre canibais, o estranho correu o mais rápido que pôde para longe de seu hóspede, que tentava em vão impedi-lo. Ele mais tarde descobriu que não havia existido nenhuma intenção de recreá-lo com carne humana, mas apenas com a carne de um estranho animal chamado “homem”.
Da mesma forma que o “homem da montanha” permanece fixado ao chão pelo seu cordão umbilical, o barnacle cresce de uma árvore pelo seu bico. É difícil dizer se ele é um animal que deve ser abatido antes de ser consumido propriamente, ou se é uma planta e pode ser comida sem nenhum cerimonial.
Dentre os pássaros a fênix é o mais fabuloso. Quando Eva deu a todos animais um pouco da fruta da árvore do conhecimento, a fênix foi o único pássaro que se recusou a comer, tendo sido então recompensado com vida eterna. Depois de viver mil anos o seu corpo se encolhe e as penas caem, até ficar pequeno como um ovo. Esse é o núcleo do novo pássaro.
A fênix é também chamada de “guardiã da esfera terrestre”. Ela acompanha o percurso do sol em seu circuito, estendendo as asas e capturando os raios inflamados do sol. Não fosse a fênix a interceptá-los, nem o homem nem outro ser inanimado teria como sobreviver. Em sua asa direita estão inscritas em caracteres imensos, com cerca de quatrocentos estádios de altura, as seguintes palavras: “não é a terra que me dá origem, nem o céu, mas somente as asas do fogo”. Seu alimento consiste em maná do céu e orvalho da terra. Seu excremento é um verme, cujo excremento é por sua vez a canela usada por reis e príncipes. Enoque, que viu as fênices quando foi trasladado, descreve-as como criaturas voadoras, fabulosas e de aparência estranha, com pés e caudas de leão e cabeças de crocodilo; seu aspecto é de cor púrpura semelhante ao arco-íris; seu tamanho, novecentas medidas. Suas asas são como as dos anjos, sendo que cada uma tem doze; as fênices assistem a carruagem do sol e acompanham-no, levando calor e orvalho onde são ordenados por Deus. De manhã, quando o sol dá início a sua jornada diária, as fênices e os chaldriki cantam, e todos os pássaros batem suas asas, regozijando o Doador de luz, e cantam uma canção ao comando do Senhor.
Dentre os répteis a salamandra e o shamir são os mais fabulosos. A salamandra origina-se de uma fogueira de madeira de murta mantida ardendo continuamente por sete anos através de artes mágicas. Não maior do que um camundongo, a salamandra é ainda assim investida de propriedades peculiares. A pessoa que se mancha com o seu sangue torna-se invulnerável, e a teia tecida por ela é um talismã contra o fogo. As pessoas que viviam por ocasão do dilúvio se vangloriavam de que, caso viesse um dilúvio de fogo, protegeriam a si mesmas com o sangue da salamandra.
O rei Ezequias deve sua vida à salamandra. Seu perverso pai, o rei Acabe, havia-o entregue aos fogos de Moloque, e ele teria sido queimado vivo não tivesse sua mãe pintado o filho com sangue de salamandra, de modo que o fogo não lhe causasse mal.
O shamir foi criado no crepúsculo do sexto dia da criação juntamente com outras coisas extraordinárias. Ele tem o tamanho de um grão de cevada, e possui a notável propriedade de cortar o mais duro dos diamantes. Por essa razão ele foi utilizado para as pedras do peitoral vestido pelo sumo sacerdote. Primeiro os nomes das doze tribos foram traçados com tinta nas pedras a serem engastadas no peitoral, e em seguida o shamir passou por sobre as linhas, gravando-as. Uma circunstância formidável foi que a fricção não produziu qualquer partícula das pedras. O shamir foi também usado para lavrar as pedras com as quais o Templo foi construído, porque a lei probia1 que ferramentas de metal fossem utilizadas na obra do Templo. O shamir não pode ser guardado num vaso de ferro ou de qualquer outro metal, porque partiria em dois o receptáculo. Ele é guardado embrulhado num pano de lã, que é por sua vez colocado num cesto de chumbo cheio de grãos de cevada. O shamir foi mantido no Paraíso até que Salomão precisasse dele, tendo enviado sua águia para trazer até ele o verme. Com a destruição do templo o shamir desapareceu. Destino semelhante recaiu sobre o tahash, que foi criado com o propósito único de que sua pele fosse utilizada no Tabernáculo. Assim que o Tabernáculo foi completado o tahash desapareceu. Ele possuía um único chifre na testa, tinha cores alegres como um peru e pertencia à classe dos animais puros.
Dentre os peixes há também criaturas fabulosas, como os cabritos-do-mar e os golfinhos, para não mencionar o leviatã. Um marinheiro viu certa vez um cabrito-do-mar em cujos chifres estava gravado: “Sou um pequeno animal marinho, mas apesar disso atravessei 1500 quilômetros para me oferecer como comida ao leviatã”. Os golfinhos são metade homem, metade peixe, e mantém até mesmo relações sexuais com seres humanos; são por isso chamados “filhos do mar”, pois num certo sentido representam a raça humana na água.
* * *
1 E se me fizeres um altar de pedras, não o construirás de pedras lavradas; pois se sobre ele levantares o teu buril, profaná-lo-ás. *Êxodo 20:25*
A CRIAÇÃO: O sexto dia, continuação
O GATO E O RATO
Embora todas as espécies do mundo animal tenham sido criadas durante os dois últimos dias da criação, muitas características de certos animais só surgiram mais tarde.
Gatos e camundongos, hoje inimigos, eram originalmente amigos. Sua inimizade atual teve uma origem específica. Certa ocasião o camundongo apareceu diante de Deus e disse:
– Eu e o gato somos parceiros, mas agora não temos o que comer.
O Senhor respondeu:
– Você está conspirando contra o seu companheiro só para poder devorá-lo. Como punição ele é que vai devorar você.
Disse o camundongo:
– Ó, Senhor do mundo, o que eu fiz de errado?
Deus replicou:
– Ah, verme impuro, você deveria ter aprendido com o exemplo da lua, que perdeu parte da sua luz por ter falado mal do sol, e o que ela perdeu foi dado a seu oponente. As más intenções que você nutre contra o seu companheiro serão punidas da mesma maneira. Ao invés de devorar o gato, ele é que irá devorar você. O camundongo:
– Ó, Senhor do mundo! Toda minha espécie será exterminada?
Deus:
– Vou cuidar para que um remanescente seu seja poupado.
Em sua indignação o camundongo mordeu o gato, e o gato por sua vez atirou-se sobre o camundongo, perfurando-o com os dentes até matá-lo. Desde aquele momento o camundongo tem tamanho pavor do gato que não tenta nem mesmo se defender dos ataques do inimigo, e vive escondido.
CÃES E GATOS
Do mesmo modo, cães e gatos desfrutavam de uma relação amigável, e só mais tarde tornaram-se inimigos. Cão e gato eram parceiros, e compartilhavam um com o outro do que quer que tivessem. Aconteceu certa vez que nenhum dos dois foi capaz de encontrar coisa alguma para comer por três dias. O cachorro então propôs que encerrassem a parceria. O gato iria até Adão, cuja casa teria por certo o bastante para ele comer, enquanto o cachorro tentaria a sorte em outro lugar. Antes de se separarem os dois juraram jamais recorrer ao mesmo mestre. O gato foi habitar com Adão, e encontrou camundongos em número suficiente para satisfazer o seu apetite. Vendo o quanto era útil para espantar e exterminar os camundongos, Adão passou a tratar o gato com toda gentileza.
O cachorro, por sua vez, passou maus bocados. Na primeira noite depois da separação ele dormiu na caverna do lobo, que havia-lhe oferecido abrigo por uma noite. Durante a noite o cão ouviu passos e foi contar a seu hospedeiro, que disse que ele fosse expulsar os intrusos. Eram animais selvagens, e o cachorro por pouco não perdeu a vida. Desconsolado, o cachorro fugiu da casa do lobo e foi buscar refúgio com o macaco. Este recusou-se a conceder a ele abrigo por uma noite que fosse, e o fugitivo foi forçado a apelar para a hospitalidade da ovelha. Novamente o cão ouviu passos no meio da noite. Obedecendo ao comando de sua hospedeira ele saiu em perseguição dos ladrões, que revelou-se no fim das contas serem lobos. O latido do cachorro informou os lobos da presença da ovelha, de modo que ele causou inocentemente a morte dela.
O cão havia agora perdido seu último amigo. Noite após noite ele saía pedindo abrigo, sem jamais encontrar um lar. Ele finalmente decidiu retornar à casa de Adão, que também concedeu-lhe abrigo por uma noite. Quando os animais selvagens aproximaram-se da casa, sob o manto da escuridão, o cão começou a latir e Adão acordou, expulsando-os em seguida com seu arco e flecha. Reconhecendo a utilidade do cachorro, Adão pediu que ele permanecesse para sempre. Porém logo que viu o cachorro na casa de Adão o gato começou a discutir com ele, repreendendo-o por ter violado seu juramento. Adão fez o melhor que pôde para apaziguar o gato: disse que ele mesmo tinha convidado o cão a fazer dali a sua casa, e assegurou que o gato não perderia nenhum privilégio com a presença do cachorro; ele queria que os dois ficassem com ele. Mas foi impossível aplacar o gato. O cão prometeu não tocar nem o gato nem qualquer coisa destinada a ele, mas o gato disse que não podia viver na mesma casa com um ladrão como o cachorro. As disputas entre cão e gato tornaram-se a ordem do dia. Finalmente o cão disse que não agüentava mais e deixou a casa de Adão, dirigindo-se á de Sete. Ele foi acolhido com carinho por Sete e, da casa de Sete, continuou seus esforços de reconciliação com o gato. Em vão. Sim, a inimizade entre o primeiro cão e o primeiro gato são até hoje transmitidas a seus descendentes. A BOCA DO CAMUNDONGO
Até mesmo as peculiaridades físicas de determinados animais não faziam parte do seu aspecto original, mas devem sua existência a algo que ocorreu depois dos dias da criação. O camundongo tinha a princípio uma boca muito diferente da atual. Na Arca de Noé, na qual todos os animais viviam pacificamente a fim de garantir a preservação de cada espécie, o par de camundongos estava sentado perto do gato. De repente esse último lembrou que seu pai tinha o hábito de devorar ratos; pensando que não havia mal algum em seguir o seu exemplo, o gato saltou sobre o camundongo, que procurava sem sucesso por um buraco por onde escapar. Então um milagre aconteceu: apareceu um buraco onde não havia existido nenhum, e o camundongo buscou abrigo ali. O gato perseguiu o camundongo, e embora não pudesse segui-lo buraco adentro, conseguia enfiar a pata, tentando tirar o camundongo de seu esconderijo. Depressa o camundongo abriu a boca na esperança de que a pata entrasse nela, e o gato fosse assim impedido de apertar as garras contra sua carne. Mas como a cavidade da boca não era grande o bastante o gato conseguiu abrir com as garras as bochechas do camundongo. Isso não ajudou muito, pois apenas alargou a boca do rato, e a presa acabou escapando. Depois de sua escapada feliz o camundongo aproximou-se de Noé e disse:
– Ó, homem piedoso, costure por gentilza a minha bochecha onde abriu-a meu inimigo, o gato.
Noé mandou que ele trouxesse um cabelo do rabo do porco, e com este ele reparou o dano. Daí originou-se a linha com marca de costura na boca de todo camundongo, até os nossos dias.
O CORVO
O corvo é outro animal que mudou sua aparência durante sua estada na arca. Quando Noé pensou em enviá-lo para averigüar o estado das águas, o corvo escondeu-se sob as asas da águia. Porém Noé encontrou-o e disse:
– Vá ver se as águas baixaram.
O corvo implorou:
– Não tem outro pássaro que você possa enviar nessa missão?
Noé:
– Meu poder estende-se apenas sobre você e sobre a pomba.
Mas o corvo não estava satisfeito, e disse a Noé com grande insolência:
– Você está me enviando apenas para que eu encontre a morte, e deseja a minha morte para que minha esposa esteja a seu serviço.
Por essa razão Noé amaldiçoou o corvo da seguinte forma:
– Que sua boca, que falou mal de mim, seja maldita, e seja sua cópula com sua esposa realizada apenas através dela.
Todos os animais da arca disseram “Amém”. É por essa razão que uma massa de saliva escorre da boca do corvo macho para dentro da boca da fêmea durante a cópula, e é só assim que ela é fecundada.
No todo o corvo é um animal sem atrativos. Ele permanece hostil com seus filhotes até que seus corpos estejam cobertos de penas negras, embora como regra geral os corvos amem uns aos outros. Deus, por essa razão, coloca os corvos jovens debaixo de sua proteção especial. Do excremento dos filhotes nascem vermes, que lhes servem de alimentos nos três dias após o nascimento, até que as penas brancas tornem-se negras e seus pais reconheçam-nos como sua prole e passem a cuidar deles.
A culpa pelo desajeitado saltitar do corvo é dele mesmo. Observando o passo gracioso da pomba ele ficou com inveja e tentou imitá-lo. Como resultado ele quase quebrou todos os ossos, sem nisso chegar perto de conseguir qualquer semelhança com a pomba, sem mencionar que angariou contra si mesmo a zombaria de todos os outros animais. Seu fracasso suscitou o escárnio deles. Ele decidiu então retomar seu andar original, mas descobriu que no intervalo o havia desaprendido. Como não era capaz de andar de um jeito ou de outro, seu passo tornou-se um saltitar entre os dois. Nisso vemos quão verdadeiro é que quem não está satisfeito com sua modesta porção acaba perdendo o pouco que tem na luta por coisas melhores e mais vultosas.
O NOVILHO
O novilho é outro animal que sofreu mudanças com o passar do tempo. Originalmente sua cabeça era completamente coberta de pelos, mas hoje em dia ele não tem pelos no focinho, porque Josué beijou-o no focinho durante o cerco de Jericó. Josué era um homem extraordinariamente pesado. Cavalos, jumentos e mulas não podiam com ele, partindo-se todos sob seu peso. Do que eles não conseguiram fazer o novilho mostrou-se capaz. Em seu lombo Josué cavalgou durante o cerco de Jericó, e em gratidão concedeu-lhe um beijo no focinho.
A SERPENTE, A TOUPEIRA E O SAPO
A serpente também é diferente do que era no princípio. Antes da queda do homem ela era o mais sagaz dos animais criados, e em aparência lembrava de perto o homem. Andava em pé, e tinha tamanho extraordinário. Depois da queda a serpente perdeu todas as vantagens intelectuais que possuía em relação aos outros animais, e degenerou também fisicamente: foi privada de pés, de modo a não poder perseguir outros animais e matá-los. A toupeira e o sapo também tiveram de ser feitos inofensivos de modo similar; o primeiro não tem olhos, do contrário seria invencível, e o sapo não tem dentes, do contrário nenhum animal aquático poderia sobreviver.
A RAPOSA
Enquanto a sagacidade da serpente causou sua ruína, a sagacidade da raposa manteve-a em posição vantajosa numa situação difícil. Depois que Adão cometeu o pecado da desobediência Deus entregou todo o reino animal ao poder do Anjo da Morte, e ordenou que ele jogasse um par de cada espécie na água. Ele e o leviatã teriam juntos, dessa forma, domínio sobre tudo que tem vida. Quando o Anjo da Morte estava para executar a ordem divina sobre a raposa, esta começou a chorar amargamente. O Anjo da Morte perguntou a razão para as lágrimas, e a raposa respondeu que estava lamentando o triste destino de seu amigo. Neste ponto ela apontou para a imagem de uma raposa no mar, que nada mais era que seu próprio reflexo na água. O Anjo da Morte, persuadido de que um representante da família da raposa já havia sido atirado na água, deixou-a ir. A raposa contou esse truque ao gato, que usou-o também contra o Anjo da Morte. Assim acontece que nem gatos nem raposas estão representados no mar, embora todos os outros animais estejam.
Quando passava os animais em revista o leviatã notou a ausência da raposa, e foi informado do modo astuto pelo qual ela havia se esquivado de sua autoridade. Ele enviou peixes grandes e poderosos na missão de atraírem o ausente para dentro da água.
Andando na beira da água, a raposa notou o grande número de peixes, e exclamou:
– Feliz de quem pode quando quiser satisfazer sua fome com peixes como esses.
O peixe disse-lhe que bastava que ele os seguisse e seu apetite seria satisfeito com facilidade. No mesmo momento informaram a raposa da grande honra que a aguardava. O leviatã, disseram eles, estava às portas da morte, e ele os havia enviado a fim de designarem a raposa como seu sucessor. Os peixes estavam prontos para carregar a raposa nos dorsos, de modo que ela não precisava temer a água, e assim conduziriam-na até o trono, que ficava sobre um enorme rochedo. A raposa cedeu a essas persuasões, e desceu até a água. No mesmo momento um sentimento de incomodação tomou posse dela. A raposa começou a suspeitar que as mesas haviam sido viradas, e que ela estava sendo feita de caça, ao invés de fazer os outros de caça como costumava acontecer. Ela insistiu que os peixes lhe contassem a verdade, e eles admitiram quem haviam sido mandados para prendê-la para o leviatã, que queria seu coração a fim de se tornar tão sábio quanto a raposa, cuja sabedoria ele tinha visto muitos louvarem. A raposa disse em tom de repreensão:
– Por que não me disseram a verdade de uma vez? Eu poderia ter trazido meu coração comigo para o rei Leviatã, que teria me coberto de honras. Agora vocês sofrerão por certo grave punição por não terem trazido comigo meu coração. As raposas, vejam, não carregam seus corações consigo, mas mantém-nos num lugar seguro, e só quando precisam dele retiram-no dali.
Os peixes nadaram depressa até a praia, onde deixaram a raposa, para que ela pudesse ir buscar seu coração. Mal havia colocado os pés em terra firme a raposa começou a saltitar e a bramir. Quando mandaram-na ir em busca do seu coração e segui-los, ela disse:
– Tolos, como eu poderia tê-los seguido água adentro, se meu coração não estivesse comigo? Ou existe então alguma criatura que possa sair por aí sem seu coração?
Os peixes responderam:
– Venha, venha de uma vez, isso é brincadeira sua.
Retrucou a raposa:
– Tolos, se fui capaz de passar a perna no Anjo da Morte, quanto mais em vocês?
Os peixes tiveram então de voltar, fracassada sua missão, e o leviatã não teve escolha a não ser confirmar o julgamento provocador da raposa:
– De fato, a raposa é sábia de coração, e vocês, tolos.
A CRIAÇÃO: Todas as coisas louvam ao Senhor
“Tudo que Deus criou tem valor.” Até mesmo os animais e insetos que parecem à primeira vista inúteis e nocivos tem uma vocação a cumprir. A lesma, que deixa atrás de si uma trilha pegajosa, consumindo dessa forma a sua vitalidade, serve de remédio para o furúnculo. A picada do marimbondo é curada aplicando-se à ferida uma mosca doméstica esmagada. O mosquito, débil criatura, que capta alimento mas jamais o secreta, é específico contra o veneno da víbora, e esse réptil venenoso cura por sua vez erupções, enquanto que o lagarto é o antídoto ao escorpião.
Não apenas todas as criaturas servem o homem e contribuem para o seu conforto, mas Deus também “ensina-nos através dos animais da terra, e concede-nos sabedoria através das aves do céu”. Ele concedeu a diversos animais admiráveis qualidades morais como padrão para o homem. Se a Torá não nos tivesse sido revelada poderíamos ter aprendido o cuidado para com as decências da vida com o gato, que cobre seu excremento com terra; o respeito à propriedade com as formigas, que jamais avançam sobre as reservas umas das outras; e o cuidado para com uma conduta decorosa com o galo, que quando deseja unir-se à galinha promete comprar para ela um manto longo o bastante para chegar até o chão, e quando a galinha lembra-o da promessa ele sacode sua crista e diz: “que a minha crista seja tirada de mim se eu não comprá-lo assim que tiver condições”.
O gafanhoto também tem uma lição a ensinar ao homem. Ele canta durante todo o verão, até que seu ventre se rompe e a morte o leva para si. Embora não desconheça o destino que o espera, ele permanece cantando. Da mesma forma o homem deve cumprir seu dever para com Deus, não importando as conseqüências. A cegonha deve ser adotada como modelo em dois sentidos. Ela guarda zelosamente a pureza de sua vida familiar, e para com seus semelhantes é compassiva e misericordiosa. Mesmo o sapo tem o que ensinar ao homem. Junto à água vive uma espécie de animal que subsiste apenas de criaturas aquáticas. Quando percebe que um desses está com fome o sapo vai até ele espontaneamente e oferece-se como comida, cumprindo dessa forma a prescrição: “se teu inimigo tem fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber”.
“SE TEU INIMIGO TEM FOME, DÊ-LHE DE COMER; SE TIVER SEDE, DÊ-LHE DE BEBER”.
Toda a criação foi chamada à existência por Deus para sua glória, e cada criatura tem seu próprio hino de louvor através do qual exalta o criador. O céu e a terra, o paraíso e o inferno, o deserto e os prados, rios e mares – todos têm seu modo próprio de prestar homenagem a Deus. O hino de louvor da terra é: “dos confins da terra ouvimos cantar: glória ao Justo!”. O mar exclama: “o SENHOR nas alturas é mais poderoso do que o bramido das grandes águas, do que os poderosos vagalhões do mar”.
Também os corpos celestes e os elementos proclamam o louvor de seu criador: o sol, a lua, as estrelas, as nuvens e os ventos, o relâmpago e o orvalho. O sol diz: “o sol e a lua param nas suas moradas, ao resplandecer a luz das tuas flechas sibilantes, ao fulgor do relâmpago da tua lança”; e as estrelas cantam: “só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”.
Cada planta, além disso, tem uma canção de louvor. A árvore frutífera canta: “então cantarão de alegria todas as árvores do bosque, na presença do Senhor, pois ele vem; pois vem julgar a terra”; e as espigas do campo cantam: “os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales vestem-se de espigas; exultam de alegria e cantam”.
Notável entre os que cantam louvores são os pássaros, e dentre eles o maior é o galo. Quando Deus visita à meia-noite os piedosos no Paraíso, as árvores dali irrompem em adoração, e suas canções acordam o galo, que começa por sua vez a dar louvor. Por sete vezes ele canta, e cada uma das vezes recita um verso. O primeiro verso é: “levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é o Rei da Glória? O Senhor, forte e poderoso, o Senhor, poderoso nas batalhas”. O segundo verso: “levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é esse Rei da Glória? O Senhor dos Exércitos, ele é o Rei da Glória”. O terceiro: “levantai-vos, vós justos, e ocupai-vos da Torá, para que seja grande a vossa recompensa no mundo vindouro”. O quarto: “tenho aguardado pela tua salvação, ó Senhor!” O quinto: “ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono?” O sexto: “não ames o sono, para que não empobreças; abre os olhos e te fartarás do teu próprio pão”. E o sétimo verso cantado pelo galo diz: “já é tempo de trabalhar para o SENHOR, pois a tua lei está sendo violada”.
A canção do abutre é: “eu lhes assobiarei e os ajuntarei, porque os tenho remido; multiplicar-se-ão como antes se tinham multiplicado” – o mesmo verso com o qual o pássaro anunciará, no devido tempo, o advento do Messias. A única diferença será que quando anunciar o Messias ele cantará esse verso pousado no chão, sendo que ele o canta sempre sentado em outro lugar.
Tampouco os outros animais louvam menos do que os pássaros. Mesmo as feras predadoras entoam adoração. O leão diz: “o Senhor sairá como valente, despertará o seu zelo como homem de guerra; clamará, lançará forte grito de guerra e mostrará sua força contra os seus inimigos”. E a raposa exorta à justiça com as seguintes palavras: “ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, sem direito! Que se vale do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário”.
Sim, os peixes mudos do mar sabem proclamar o louvor de seu Senhor. “Ouve-se a voz do SENHOR sobre as águas,” dizem eles, “troveja o Deus da glória; o Senhor está sobre as muitas águas”, enquanto o sapo exclama: “bendito seja o nome da glória do seu reino, para todo o sempre”. Desprezíveis como são, mesmo os animais rastejantes dão louvor a seu criador. O camundongo exalta a Deus com as seguintes palavras: “porque tu és justo em tudo quanto tem vindo sobre nós; pois tu fielmente procedeste, e nós, perversamente”. E o gato canta: “todo ser que respira louve ao Senhor. Louvai ao Senhor!”
ADÃO: O homem e o mundo
Com dez frases Deus criou o mundo, embora uma única frase tivesse bastado. Deus queria deixar claro quão severa será a punição aplicada sobre os perversos, que destróem o mundo criado através de até dez frases, e quão agradável a recompensa destinada aos justos, que preservam o mundo através de até dez frases.
O mundo foi feito para o homem, embora tenha sido a última de suas criaturas a chegar. Isso foi proposital, porque o homem deveria encontrar todas as coisas prontas para si. Deus foi o anfitrião que preparou pratos finos, pôs a mesa e em seguida conduziu o convidado ao seu lugar. Ao mesmo tempo, a aparição tardia do homem sobre a terra deve ser vista como uma admoestação à humildade. Que o homem se guarde do orgulho, para não ter de ouvir a provocação de que o pernilongo é mais velho do que ele.
A superioridade do homem sobre as outras criaturas fica evidente no próprio modo da sua criação, completamente diferente do delas. Ele foi o único criado pela mão de Deus: o restante surgiu da palavra de Deus. O corpo do homem é um microcosmo, um mundo completo em miniatura, e o mundo, por sua vez, é um reflexo do homem. O cabelo da cabeça corresponde às florestas da terra, suas lágrimas ao mar, sua boca ao oceano. O mundo, além disso, é semelhante à órbita do olho do homem: o oceano que engloba a terra é como o branco do olho, a terra seca é a íris, Jerusalém a pupila e o Templo a imagem refletida na pupila.
“POR CAUSA DE ISRAEL, CRIAREI O MUNDO”.
Porém o homem é mais do que mera imagem do mundo. Ele alia em si mesmo qualidades do céu e da terra. De quatro ele faz lembrar os anjos, de quatro faz lembrar os animais. Sua capacidade de se expressar, seu intelecto judicioso, sua postura ereta, o fulgor do seu olhar – tudo isso faz dele um anjo. Por outro lado ele come e bebe, expele dejetos do corpo, reproduz-se e morre, como as feras do campo. Foi por isso que Deus disse antes da criação do homem:
– Os seres celestiais não se reproduzem, mas são imortais; os seres da terra se reproduzem, mas morrem. Criarei o homem a fim de unir os dois, de modo a que quando ele pecar, quando comportar-se como animal, a morte o acometerá; mas se abster-se de pecar, viverá para sempre.
Deus convocou todos os seres do céu e da terra para contribuírem na criação do homem, e ele mesmo tomou parte nela. Por essa razão todos esses amam o homem, e se ele viesse a pecar mostrar-se-iam interessados na sua preservação.
O mundo inteiro, naturalmente, foi criado para o homem piedoso, temente a Deus, que Israel produz com a oportuna condução da lei de Deus revelada a ela. Portanto Israel é que foi levado em consideração quando o homem foi feito. Todas as outras criaturas foram instruídas a alterarem sua natureza se em algum momento do curso da história Israel precisasse de ajuda. Ao mar foi ordenado que se dividisse diante de Moisés, e ao céu que desse ouvidos às palavras do líder; o sol e a lua foram instados a pararem sob o comando de Josué, os corvos a alimentarem Elias, o fogo a poupar os três jovens na fornalha, o leão a não causar dano a Daniel, o peixe a cuspir Jonas e o céu a abrir-se para Ezequiel.
Em sua humildade, Deus consultou os anjos, antes da criação do mundo, a respeito de sua intenção de criar o homem. Ele disse:
– Por causa de Israel, criarei o mundo. Farei divisão entre luz e trevas, da mesma forma que no futuro farei por Israel no Egito: densas trevas cobrirão a terra, e os filhos de Israel terão luz em suas habitações; farei separação entre as águas abaixo do firmamento e as águas acima do firmamento, da mesma forma que farei por Israel: dividirei as águas para ele na travessia do Mar Vermelho; no terceiro dia criarei as plantas, e farei da mesma forma por Israel: produzirei para ele o maná no deserto; criarei os grandes luminares para dividirem o dia e a noite, e farei o mesmo por Israel: irei diante dele como uma coluna de nuvem durante o dia e como uma coluna de fogo durante a noite; criarei as aves do céu e os peixes do mar, e farei o mesmo por Israel: trarei para ele codornizes do mar; da mesma forma que soprarei o fôlego da vida nas narinas do homem, farei por Israel: darei a ele a Torá, a árvore da vida.
TODA A CRIAÇÃO FOI CONDICIONAL.
Os anjos maravilharam-se de que tanto amor fosse dispensado ao povo de Israel, e Deus disse a eles:
– No primeiro dia da criação farei o céu e o estenderei; da mesma forma Israel erguerá o Tabernáculo como habitação da minha glória. No segundo dia estabelecerei uma divisão entre as águas da terra e as águas do céu; da mesma forma Israel pendurará no Tabernáculo um véu para separar o lugar Santo do Santo dos Santos. No terceiro dia farei com que a terra produza ervas e vegetação; da mesma forma Israel, em obediência aos meus mandamentos, comerá ervas na primeira noite da Páscoa, e preparará para mim os pães da proposição. No quarto dia farei os luminares; da mesma forma Israel fará para mim o candelabro de ouro. No quinto dia criarei os pássaros; da mesma forma ele moldará [sobre a Arca] os querubins de asas estendidas. No sexto dia criarei o homem; da mesma forma Israel separará um homem dos filhos de Arão para sumo-sacerdote a meu serviço.
Conseqüentemente, toda a criação foi condicional. Deus disse às coisas que fez nos seis primeiros dias:
– Se Israel aceitar a Torá, vocês permanecerão e se perpetuarão; de outro modo farei com que tudo retorne ao caos.
O mundo inteiro viveu portanto em suspense e temor até o dia da revelação do Sinai, quando Israel recebeu e aceitou a Torá, cumprindo assim a condição estabelecida por Deus no momento em que criara o universo.
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